A filosofia do Sámkhya
O Sámkhya é considerado o mais antigo de todos os sistemas filosóficos da Índia. Tem-se Kapila como seu fundador, lá pelo século VI a.C., embora se tenha descoberto em escritos anteriores idéias incorporadas posteriormente à doutrina Sámkhya. Assim como o Yôga clássico, o sistema Sámkhya surgiu de uma tradição oral bem mais antiga. No Rig-Veda, no Mahabhárata, nos Upanishads e em outros textos, encontramos um fundo comum que originou os três principais sistemas ortodoxos: o Sámkhya, o Yôga e o Vêdánta. Semelhantemente ao Yôga, o Sámkhya dividiu-se em várias correntes e encontrou períodos de renascimento e expansão, possuindo vários textos e pensadores importantes. O Sámkhya-Kariká de Íshwara Krshna é o mais antigo e remonta ao século IV. Entre os comentários ao Sámkhya-Kariká temos o Sámkhya-Tattva-Kamudi de Vâchaspatimisra (séc.IX), e os trabalhos de Aniruddha (séc.XV) e Vijñana Bhikshu (séc.XVI), estes últimos baseados também no Sámkhya-Pravacana-Sútra.
O termo Sámkhya pode ser tomado em vários sentidos; sua raiz tem a ver com a palavra "número", adquirindo a partir daí o significado de "enumeração" e "classificação perfeita". A "classificação" aqui entendida deve ser a complexa cosmogonia Sámkhya, que toma o universo como o desenvolvimento de vinte e quatro princípios. Todos estes princípios surgem de um dualismo fundamental entre Purusha (espírito) e Prakrití (matéria). No seu desenvolvimento, o universo une os dois pólos, que no homem são responsáveis pela ignorância e o sofrimento. A libertação humana consiste em novamente separar espírito e matéria, por isso Mircea Eliade toma o termo Sámkhya no sentido de "discriminação".
Não se pode escrever sobre Yôga sem tratar do Sámkhya, tamanho são os vínculos entre uma escola e outra. Muitos subestimam o Yôga, atribuindo ao Sámkhya todas as suas idéias filosóficas importante, mas não nos parece assim. Ao mesmo tempo que o Yôga tomou do Sámkhya grande parte de sua metafísica e certos aspectos da sua psicologia, não podemos desconsiderar profundas divergências que encontramos entre ambos. O Sámkhya é às vezes chamado de Niríshwara-Sámkhya (o Sámkhya sem Íshwara) em contraposição ao Yôga, muitas vezes chamado de Sêshwara-Sámkhya (o Sámkhya com Íshwara). Ou seja, toma-se as escolas como se compusessem uma mesma metafísica, com a única diferença que, enquanto o Sámkhya é ateu (sem Íshwara - o Senhor), o Yôga é atenuadamente teísta (com Íshwara - o Senhor). Porém, o Sámkhya não é completamente ateu, nos textos mais antigos do Sámkhya a idéia de Deus era contemplada, posteriomente é que esta idéia foi tão individualizada que Deus passou a ser sinônimo de espírito humano individual. Sem negarmos a imensa influência do Sámkhya sobre o Yôga e outras escolas filosóficas hindus e gregas, devemos reconhecer que, enquanto o Sámkhya se baseia na tradição escrita, o Yôga se funda na tradição oral e na experiência direta. No Sámkhya e no Vêdánta a percepção da verdade é um discernimento (viveka), enquanto no Yôga a verdade é a experiência do êxtase (samádhi). Devido a isso, o Yôga possui uma ontologia mais sintética e prática, faz uso de uma terminologia menos metafísica e mais voltada à aplicabilidade existencial. Ambas as escolas se completam mutuamente; encontramos no Mahabhárata:
"Não há conhecimento como o Sámkhya, não há poder como o Yôga.".
Apesar das diferenças por nós apontadas entre Sámkhya e Yôga, torna-se impossível separar completamente esta filosofias, escrever sobre Pátañjali implica comentarmos também o Sámkhya, como: a dor universal, a criação (de cunho teológico e fruto da ignorância), a relação do espírito com a matéria, a estrutura da vida psíquica, a libertação humana, e o tema de nosso trabalho - a consciência. Todos estes temas se referem de algum modo ao problema da consciência, e serão abordados um a um no decorrer de nossa tarefa. Nela são particularmente importantes os conceitos de Purusha e Prakrití, pois manipulando a interpretação dos mesmos nós faremos considerações sobre: a consciência, o ser e o conhecimento. Diz o Bhagavad-Gíta:
"Ao contrário do sábio, o ingênuo acredita que o método Sámkhya e o Yôga são coisas distintas. Quem se aplica devidamente a um deles colhe o fruto de ambos."
Extraído do livro Yôga e Consciência, de HENRIQUES, Antônio Renato
O Purusha
Nos antigos Vedas já aparece o termo Purusha, como essência universal, associada à cosmogonia:
"Purusha tem mil cabeças, mil olhos e mil pés. Pervade a terra por todos os lados, enche o espaço da largura de dez dedos. Purusha é na verdade tudo isto, tudo que foi e será. É o Senhor da imortalidade e se torna maior ainda pelo 'alimento'."
O "alimento" de que trata o texto é o alimento sacrificial. Purusha como divindade suprema torna-se ainda maior pelo sacrifício. Os Upanishads clarificam mais ainda esta idéia de Purusha como ser supremo. Identificando-o ao aspecto criador da Trimurti (Brahma):
"Purusha, o ser perfeito, inspirador de incessantes desejos, está desperto durante o sono, e se denomina de Brahma, o imortal. Alicerce dos mundos, nada é diferente dele".
O termo Purusha aparecerá no Sámkhya (que é ateu) e no Yôga, já não mais identificado a uma divindade, mas significando o "espírito". Na base da ontologia Sámkhya há o dualismo de espírito e matéria. O termo Purusha, que designa o espírito, significa literalmente o "homem"; Purusha é a essência individual do homem. Este espírito individual deve ser tomado aqui como consciência singular, distinta e única. Apesar de os Purushas serem múltiplos, inumeráveis e distintos, eles são homogêneos, porque pertencem a uma mesma natureza. Vemos que este dualismo do Yôga conduz a um pluralismo, existe Prakrití (a matéria primordial), que, ao emanar, se divide, e Purusha, que é múltiplo, ou seja, existe Prakrití e Purushas. Porém, devido à simultaneidade e às relações que irão se estabelecer entre Purusha e Prakrití, pode-se dizer que há sob o dualismo explícito um monismo implícito. É Purusha que dá sentido à Prakrití, e no êxtase (samádhi) o dualismo desaparece, pois o universo manifestado é como não-existente, só a realidade de Purusha é percebida, ou melhor, é autopercebida.
Purusha é eterno e contempla seu próprio ser, é o conhecedor, a testemunha. Purusha é consciência pura, isolada dos sentidos em suas relações com a matéria; é, portanto, diferente dos estados de consciência próprios do mundo mental. Purusha é sem desejos e sem inteligência, seus atributos são negativos.
Desde suas mais remotas formulações, nos Upanishad, nas epopéias, no Bhagavad-Gítá, nos Yôga-Sútra e seus comentários, o Yôga se apresenta indissoluvelmente ligado a um outro "ponto de vista" (dárshana) tradicional, ao Sámkhya, entretanto não como este aparece codificado durante a época clássica nos Sámkhya-Karika de Íshwara Krshna, mas as formas mais antigas da mesma escola.
O Sámkhya estabelece os princípios sobre os quais o Yôga baseia sua prática e define com clareza o objetivo que ela terá como alvo, de modo que todas as disciplinas propostas pelo Yôga ficam desprovidas de sentido se não compreendermos a cosmologia, a psicologia e a soteriologia fornecidas pelo Sámkhya. Sámkhya e Yôga, que eram tidos como os dois mais antigos ensinamentos (o Mahabharata os denomina "as duas doutrinas eternas", sanatane dve), são freqüentemente considerados como os dois aspectos, um teórico e o outro prático, de uma mesma doutrina. Uma das melhores fontes de informação que possuímos sobre a situação antiga da doutrina Sámkhya é constituída pelo próprio comentário de Vyása aos aforismos de Pátañjali, o Yôga-Bhashya; esse comentário se conclui ao fim de cada capítulo pelo colofão: "Tal é, no ensinamento do Yôga de Pátañjali, na exposição do Sámkhya, o capítulo do comentário de Vyása que trata de ...", expressão que mostra claramente ter sido o texto composto com a intenção de elucidar ao mesmo tempo os princípios do Sámkhya e do Yôga. Se ainda tivéssemos dúvidas sobre as estreitas relações entre essas duas vias, o Bhagavad-Gítá nos assegura (III, 5-6):
"Os ignorantes (literalmente: as crianças) falam do Sámkhya e do Yôga separadamente (como de duas vias diferentes), mas não as pessoas instruídas que, ao se dedicarem a um, conhecem igualmente o fruto dos dois."
Se bem que o Sámkhya se coloque como um sistema completo, que se basta a si mesmo, para permitir ao homem a finalidade última da existência, encontra sua aplicação natural nos métodos do Yôga, e todo esforço do yôgin (adepto do Yôga) é incompreensível se não foram aceitos os dados fundamentais estabelecidos pelo Sámkhya. Entretanto, não é raro ver-se pesquisadores lançarem-se ao estudo do Yôga sem terem plenamente apreendido os princípios do Sámkhya e, justamente por causa disso, pararem ou perderem-se no caminho; por esse motivo, a exposição desses princípios será um pouco longa
Purusha e Prakrití
O segundo pólo da realidade primeira é Prakrití, que pode ser chamada de substância primordial, origem de todo o universo fenomênico.
Prakrití, assim como Purusha, é atemporal e, nesse sentido, eterna. Prakrití é tomada também num sentido de matriz feminina, que, devido à proximidade de Purusha, elemento masculino primordial, se dinamiza dando início à criação.
Purusha atua sobre a Prakrití como um ímã, à distância. E da Prakrití surge a primeira manifestação (tattva) que é Mahat - "o grande", é assim chamado por ser o mais elevado dos princípios, não existindo nenhum maior que ele. Mahat pode ser entendido como energia cósmica ainda não diferenciada, sendo chamado também de Buddhi. O termo Buddhi dá ao Mahat o sentido específico de "inteligência". Mas tal é a inteligência cósmica, Buddhi nos textos clássicos é comparada ao céu estrelado, ao firmamento, representando a divina inteligência ainda não individualizada.
O terceiro princípio é ahamkára, a individualização, o surgimento do eu; aham em sânscrito significa "eu". Em ahamkára, a inteligência (Buddhi) se individualiza tornando-se inteligência pessoal, intelecto, parte finita do firmamento infinito, expressão humana da inteligência divina. Segundo o Sámkhya, ahamkára não possui estrutura, é uma massa energética que escapa ao sensóreo, é apenas uma vaga autoconsciência, o obscuro conhecimento de ser um "eu". A partir de ahamkára a Prakrití se bifurca, criando de um lado a realidade subjetiva e de outro a realidade objetiva, pois que o princípio de individualização implica o surgimento do sujeito frente aos objetos, do eu frente ao não-eu. No mundo relativo ao sujeito surgem as cinco faculdades sensíveis (tanmatras): sonora, tangível, visível, sápida e olfativa; e os cinco elementos (buttas): éter, ar, fogo, água e terra. Como manifestação do sujeito frente aos objetos surgem as cinco faculdades de ação (Karmendriya): palavra, preensão, locomoção, excreção e prazer, relativos à voz, às mãos, aos pés, ao ânus e ao sexo. Dos tanmatras (qualidades sensíveis) surgem os átomos (paramánu) e moléculas (sthulabhutani), e deles os vegetais (vrikshas) e animais (sharira). Eis como se manifesta Prakrití. Nestas manifestações estão presentes as qualidades primitivas ou modos de manifestação, que são: tamas, rajas e sattwa.
A essência do Sámkhya
Um texto Sámkhya afirma: "Tal como o leite inanimado jorra com a finalidade do crescimento da vitela, assim é a atividade da matéria primordial (Prakrití), do gênero feminino), destinada à libertação do espírito (Purusha, masculino). Tal como uma bailarina revela a sua arte ao público e se retira, do mesmo modo a matéria primordial se desenrola perante o espírito e se retira depois. Assim, nenhum espírito está preso, nenhum é libertado, nenhum transmigra; a matéria primordial, tomando formas diferentes, transmigra, prende-se e liberta-se a si própria. Por meio das suas próprias formas a matéria se limita a si própria e, tendo por objetivo o espírito, ela própria, com uma das suas formas, nomeadamente o conhecimento, causa libertação. 'Não sou assim', 'Isto não é meu', 'Isto não sou eu próprio'- pelo repetido reconhecimento desta verdade surge o conhecimento puro. Pelo que o espírito, permanecendo não-afetado, qual espectador, contempla a matéria primordial que, tendo cessado o seu objetivo, parou de evoluir. Um (espírito) é indiferente porque a sua visão se fez através da matéria; o outro (matéria) deixou de ser ativo porque foi um meio de outrem ver; mesmo que a sua união continue por algum tempo, não há evolução."
Extraído do livro A Índia, de RAGHAVAN, G.N.S. Pág. 9. Publicações Dom Quixote. Lisboa. 1984.
Os samskáras e os vasanás na estrutura psíquica do ser humano
Na literatura sânscrita do Yôga não há um termo que traduza literalmente o sentido da palavra "inconsciente", porém, nela aparecem muitos termos que só podem ser compreendidos supondo-se uma concepção de inconsciente. Poderíamos sem exagero dizer que o inconsciente é uma invenção hindu, basta vermos a importância que possui no Yôga seus termos similares.
1.1 Samskára (impressões)
Os processos mentais (chittavritti) deixam na mente impressões subconscientes, que Pátañjali chama de samskára. Estas impressões permanecem na mente de modo latente, influenciando a vida psíquica, são o que o Yôga chama também de "sementes" (bíja), que produzem "tendências" (vásana), novos pensamentos, redemoinhos mentais (vrittis). Cabe ao praticante de Yôga impedir o surgimento dos samskára e destruir as impressões e tendências que buscam atualização.
Quando uma tendência ou impressão se atualiza, transforma-se em hábito e se aprofunda como samskára. Se tal hábito não é superado, suprimido ou sublimado, ele se transformará em vício, implicará pelo menos a dependência psíquica e a compulsão ao ato repetitivo. Por exemplo: se alguém experimenta um cafezinho num intervalo de trabalho, tendo isto como algo agradável, tenderá a repetir a experiência em todos os intervalos de trabalho, e se sentirá necessitado de um café no dia em que tal atualização não for possível.
Para Pátañjali samskára é o mesmo que memória, já que sem memória não permaneceria na mente impressão alguma, e tampouco haveria desejo de reprisar qualquer ato que fosse.
1.2 Vásana (tendências)
O termo sânscrito vásana também é usado por Pátañjali num sentido quase igual ao de samskára. Podemos traduzir vásana como tendência latente ou impulso. A diferença sutil entre samskára e vásana é que o primeiro tem uma conotação estática de impressão, registro, enquanto que o segundo seria a faceta dinâmica da impressão, ou seja, sua manifestação como tendência, desejo, pulsão. Escreve Feuerstein:
"Os samskára de um mesmo tipo combinam-se para formar configurações ou 'rastros' (vásana) na mente profunda."
Quase ninguém faz tal distinção, pois ambos aparecem juntos e no fundo são a mesma coisa. Mircea Eliade escreve:
"A vida é uma contínua descarga de vásanas que se manifestal nos vrittis. Psicologicamente, a existência humana é uma incessante atualização do subconsciente, mediante 'experiências'. Os vásanas condicionam o caráter específico de cada indivíduo; tal condicionamento está de acordo com a herança e com a situação kármica do indivíduo."
Isto significa de um lado que o reconhecimento da ilusão por si só não liberta o homem, pois segundo o Yôga, nele os vásanas continuarão atuando. De outro lado sabemos que os vrittis podem ser com kleshas ou sem kleshas, e que o termo klesha pode ser traduzido como "mancha", "impureza". Daí que o conceito de vásana está bastante próximo da psicanálise freudiana, pois as tendências aparecem como desejos. Pulsões impuras do inconsciente e desejos inconfessáveis do "id" são quase o mesmo. O impulso inconsciente quer se tornar consciência, o desejo quer se realizar e repousar.
No Yôga os impulsos inconscientes possuem uma dimensão muito ampla, pois estão associados à idéia do karma. São as ações que cobram suas conseqüências num circuito de causa e efeito, em que os atos se registram como expressões de experiências agradáveis ou desagradáveis, em que as impressões se transformam em tendências que, ao se atualizarem na consciência, conduzem irremediavelmente e de novo ao ato. Este círculo é rompido quando o espírito (Purusha) deixa de ser arrastado pela matéria (Prakrití); a ignorância se desfaz quando o yôgi adquire o discernimento e faz uso das técnicas do Yôga. Escreve Pátañjali:
"Hetu-phálashrayálambanaih samgrihítatvád eshám abháve tad-abhávah"."Estando interligados (samgrihitatvád) como causa-efeito, substrato-objeto (ashraya = apoio, suporte, 'substrato'; alambanaih = objeto), os efeitos desaparecem (abhávah) quando a causa desaparece (abháve)".Y. S. - IV, 11
Demonstra o Yôga que os samskáras e vásanas são grandes obstáculos à iluminação, o inconsciente se opõe à ascese, por isso se impõe seu necessário domínio e conscientização. Há também o medo, pois as pulsões inconscientes temem não se atualizarem, e o ego teme sucumbir às forças totalizadoras do inconsciente.
A satisfação dos desejos e a manifestação de formas são impulsos egóicos de exteriorização, mas realizar um desejo é esgotá-lo, e a plenitude de ser das formas está na consumação das mesmas. Donde se fala de uma ânsia de não ser, as tendências kármicas querem todas se autodestruir, satisfazer-se. Todo o universo material (Prakrití) caminha em direção ao repouso, à reabsorção numa unidade original.
Extraído do livro Yôga e Consciência, de HENRIQUES, Antônio Renato. Pág. 84-87. 2a. ed. Ed. Rígel. São Paulo, 1984.